Castro Soromenho

10/09/2009

O lugar de Terra Morta na visão de alguns críticos

Em 1949, foi publicada no Rio de Janeiro a primeira edição de Terra Morta. O romance inaugurou a Coleção Gaivota da Casa do Estudante do Brasil, editora dirigida por Arquimedes de Melo Neto. Terra Morta é considerado o primeiro livro da “trilogia de Camaxilo” que constitui a segunda fase da obra de Castro Soromenho.

A história passa-se na decadente povoação de Camaxilo (Angola), que fora o centro comercial mais importante da Lunda, no período da borracha, e palco da revolta do soba Caungula e da sangrenta repressão que se seguiu. A colonização portuguesa agoniza. Restam poucos comerciantes e funcionários administrativos, cuja principal função é recrutar a mão-de-obra negra para os trabalhos forçados nas minas de diamante e na própria administração colonial. Mas se esses portugueses são os instrumentos da opressão, todos, negros, mestiços e brancos, são vítimas do sistema colonial. Roger Bastide capta o espírito do romance, que transcende maniqueísmos: “[d]as páginas de Terra Morta ou de Viragem [o segundo livro da trilogia] exala-se um odor de urina, de excrementos, de suor azedo e de vómitos (…) é o negro que perdeu os seus deuses e que se debate no vácuo, é o branco que perdeu o contacto com a sua sociedade e a sua civilização e se afunda lentamente não sei em que pântano, em que lhe falta até a coragem para se debater, para lançar ao menos um grito de apelo” [1].Terra Morta - primeira edição

Escrito numa época em que na literatura dita colonial predominava, sob os auspícios do Estado Novo Salazarista, a exaltação da “missão civilizadora”, o livro, que já estava praticamente pronto na primeira metade da década de quarenta, não pôde ser publicado em Portugal, pois, como nos diz Cândido Beirante: “Terra Morta é uma pedrada no charco do nacional-exotismo africanista. Mostra a outra face, até então oculta do público soromenho, da colonização portuguesa que, pela forçosa aculturação, destruiu a autenticidade da cultura das primitivas sociedades bantas” [2].

Terra Morta pertence tanto à literatura angolana quando à portuguesa. Do ponto de vista da primeira, é considerado um romance fundamental, que viria a influenciar profundamente os novos autores angolanos, que lutaram pela independência, como se pode constatar a partir das considerações do poeta Costa Andrade (Ndunduma wé Lépi), entre outros: “Soromenho escrevendo em português climatiza, ideologiza e universaliza o choque que gerou a angolanidade. Hoje, o mais idoso dos nossos escritores, Soromenho, revela-se novo e atual, mesmo após a forçada e longa ausência de uma vida de exílio. Em Soromenho, o escritor e o homem confundem-se numa coerência exemplar, de que a angolanidade se orgulha” [3]. Rita Chaves, a seu turno, considera as obras de Assis Jr., Castro Soromenho, Oscar Ribas e Luandino Vieira como constituintes do romance angolano [4] e Pires Laranjeira fala-nos de um lugar cativo de Soromenho na literatura angolana [5].

Na literatura portuguesa, a posição de Terra Morta é singular. Em 1949, Adolfo Casais Monteiro considerou que a obra iria renovar o neo-realismo. Na opinião do poeta e crítico português, faltava ao neo-realismo lusitano uma verdadeira “necessidade” que permitisse superar o romance de tese: “[o] mundo, qualquer mundo, está cheio de dramas reais; mas é preciso conhecê-los; mais do que isso é preciso ser-se capaz de, conhecendo-os, os penetrar, mergulhar para além da aparência, achar os fundamentos verdadeiros de cada vida que se pretende tornar real aos olhos do leitor” [6].  Sem deixar de reconhecer que se tratava de um romance da chamada “literatura colonial”, Casais Monteiro atribuía-lhe uma estatura universal: “… estamos bem longe da literatura de propaganda, pró ou contra, para a qual só há anjos e demônios. Não; livros dêstes só se escrevem com um profundo amor pelo homem: êsse quadro não seria de tão pungente verdade, se não surgisse da impressionante realidade das personagens em que Castro Soromenho encarnou o drama vivido ao longo das páginas do seu romance; por isso êle ficará como uma das obras mais significativas do nosso tempo” [7].

Opinião muito semelhante foi expressa por Roger Bastide no prefácio à tradução francesa da obra (Camaxilo, 1956) [8]. Para o sociólogo francês, o neo-realismo seria uma reação à “arte pela arte”, a um subjetivismo exagerado que predominaria na literatura portuguesa do começo do século. Fazia-se necessário refletir sobre as realidades sociais. No entanto, “como o diz com precisão André Gide, “não se faz literatura com bons sentimentos”. O desejo de aproximar a arte do povo levava a um certo relaxamento da forma, a um desprezo injustificado pelos valores estéticos. O neo-realismo hesitava assim entre o romance de tese, geralmente a tese marxista, e o sentimentalismo. Ele “demonstrava” ao invés de “mostrar” ” [9].

Ora, Terra Morta permitiu, na opinião de Bastide em 1956, que neo-realismo português saísse desse impasse. Ao rejeitar o maniqueísmo e dar vida aos seus personagens (ao invés de apresentá-los como meras personificações de relações sociais, poderíamos acrescentar), Castro Soromenho teria feito a “passagem da demonstração à descrição objetiva dos meios sociais. Passagem de um sentimentalismo de encomenda ao amor pudico dos homens. A procura de um estilo, e não o desprezo pela forma. Tais são as qualidades que fazem do livro que se vai ler uma data na história do neo-realismo português” [10].

Em 1961, a editora Arcádia tentou publicar Terra Morta em Portugal, mas o livro foi logo proibido. Em 1968, Castro Soromenho morre no exílio, em São Paulo, Brasil. Somente após o 25 de abril, o público português teve acesso pleno à obra, editada pela Sá da Costa. O livro figura, então, entre os mais vendidos (segundo as listas do Diário de Notícias e Diário Popular) e, das várias apreciações que surgem sobre a obra, cabe destacar a de José-Augusto França, que já havia escrito sobre Terra Morta um artigo em 1949 [11].

França nos diz que se trata de “um livro de há trinta anos que não envelheceu”. Recorda o seu próprio artigo de 49 sobre obra e o prefácio de Roger Bastiste a Camaxilo, destacando a expectativa desse autor de que o livro influenciaria o neo-realismo português. E acrescenta: “Assim é, na verdade, na história literária dos anos 40; mas seria optimismo demasiado adoptar, agora, a visão optimista do sociologo francês. Castro Soromenho ficou isolado na sua diligência literária, figura marginalizada duma “escola” que tinha outras obediências locais. E se (como afirma R. Bastide) “a literatura colonial, existindo há já meio século, nada tinha produzido de comparável a Terra Morta”, este romance, vítima em circunstâncias adversas, do próprio regime político do País e do seu contrário, foi praticamente ignorado em Portugal” [12].

A literatura portuguesa, como se sabe, seguiria outros rumos, aproximando-se do existencialismo e de outras correntes modernas. O próprio país voltar-se-ia para a Europa, ficando para trás o seu passado colonial.

Em 1988, a revista África, do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo, praticamente destinou um número a trabalhos sobre a obra e vida de Castro Soromenho. O primeiro artigo foi uma nota à memória do autor de Terra Morta escrita por José-Augusto França. O autor recorda-nos que Castro Soromenho representa um caso único na literatura portuguesa “em sua temática africana, pelo valor romanesco e pela situação ideológica de sua obra. Assim diria, como diz, qualquer história da literatura.” [13]. França reafirma, desse modo, o ponto de vista sobre o lugar da obra de Castro Soromenho na literatura de Portugal que já havia apresentado no artigo de 1976. Porém, não é mais a relação de Castro Soromenho com o neo-realismo lusitano que lhe chama a atenção, mas sim a importância da obra para a compreensão (aquela compreensão que só a arte proporciona) da identidade histórica e cultural do português. França assinala os dois mundos discutidos na obra soromenha, os viveres do nativo e do colonizador, que se entrelaçam e se repelem “na danada incompreensão da história alheia”. Diz-nos que Soromenho entendeu o homem negro do seu tempo e, “melhor do que ninguém”, o destino triste dos brancos na colônia. E conclui: “(…) toda a história que queira compreender-se, da presença sonambúlica, sórdida tantas vezes, e ingênua, dramática sempre, dos portugueses nas vastas terras negras em que viveram, tem de passar pelo que Soromenho conta em meias palavras, avaro de vozes, calando pensamentos – na simples realidade cotidiana que a natureza ordena, e a desgraça lentamente habita” [14].

 

[1] Bastide, R. L´Afrique dans l´œuvre de Castro Soromenho, tradução de Mario Pinto de Andrade, incluído em Histórias da Terra Negra, de Castro Soromenho, p. XXV.

[2] Beirante, Cândido, Castro Soromenho – Um Escritor Intervalar, Lisboa, 1989, p. 92.

[3] Costa Andrade, Literatura Angolana (Opiniões), Lisboa, Edições 70, 1980, p. 56. Citado por Cândido Beirante, p. 94.

[4] Chaves, Rita. A Formação do Romance Angolano: Entre Intenções e Gestos. São Paulo, Via Atlântica / Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa, 1999.

[5] Laranjeira, Pires. Questões da formação das literaturas de língua portuguesa. Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 110/111, Jul. 1989, p. 66-73.

[6] Casais Monteiro, A. O Romance – Teoria e Crítica, José Olympio, 1964, p. 394.

[7] Idem, p. 396.

[8] Segundo Fernando Mourão, foi Mario Pinto de Andrade que apresentou a literatura africana de expressão portuguesa (e, posteriormente, o próprio Castro Soromenho) a Roger Bastide. Ver MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque. Roger Bastide e Angola: a Lunda na obra de Castro Soromenho. Afro-Ásia, Salvador, no 12:141-4, 1976.

[9] Bastide, R. Préface. In Soromenho, F. M. C. Camaxilo. Paris, Présence Africane, 1956, p. 10.

[10] Idem, p. 11.

[11] FRANÇA, José Augusto. Terra morta, romance de Castro Soromenho. Seara Nova, 28 (1131): 149-51, 10 set. 1949.

[12] FRANÇA, José Augusto. “Terra Morta”, de Castro Soromenho, Edição e Reedição. Colóquio-Letras (Fundação Calouste Gulbenkian). Lisboa, n. 31 84-5, 1976, p. 85.

[13] FRANÇA, José Augusto. Castro Soromenho – Nota Brevíssima à sua Memória. África. Revista do Centro de Estudos Africanos, Universidade de São Paulo, 11, p. 3-4, 1988.

[14] Idem, p. 4.

Terra Morta foi publicado no Brasil, França, Tchecoslováquia, Portugal, Angola, Rússia, Hungria, Suécia, Cuba, Polônia, Holanda, Alemanha e Inglaterra, e adaptado para o teatro (Rádio e Televisão Francesa).

Atualmente, duas edições estão no mercado: na Grã-Bretanha (Dying Land. Translated with an Introduction by Annella McDermott. 2006. Saagull/Faoileán.); e em Portugal (Terra Morta. Lisboa. Edições Cotovia, outubro de 2008, Biblioteca dos editores independentes. Edição de bolso.).

Trechos:

“A luz amarela do candeeiro de petróleo espalhava-se sobre o pano de ramagens que cobria a mesa. A cara dos homens estava na meia sombra, por cima do quebra luz. Eram quatro à volta da mesa. Estavam calados, com a atenção concentrada nas cartas de jogo que um deles, de costas voltadas para a porta que dava para a estrada, talhava com gestos vagarosos, aparentando serenidade. Mas era tão visível o esforço que fazia para se mostrar sereno que os companheiros trocaram rápidos olhares.”

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“O sol caía a prumo nas costas dos negros, homens e mulheres, dobrados pela cintura, cava que cava, com as enxadas de dois cabos curtos, abrindo uma picada através do capinzal. Os braços cansados começavam a dar pouco rendimento e as bocas secas e sujas de poeira pediam água. De vez em quanto, aqui e ali, os mais fracos endireitavam o dorso deitavam as mãos aos rins doridos, fazendo caretas. Mas, logo, os gritos dos capitas os atiravam para a frente, partidos pelo meio, e as enxadas subiam e desciam, a rebrilharem ao sol.”

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“Um cão atravessou a rua a correr atrás de uma galinha. A negra velha do colono gritou-lhe e ele fugiu para o mato. Flávia sorriu-se para a negra e fechou as portas da loja. Depois, foi buscar o pai e levou-o para dentro de casa, porque começava a arrefecer.

A sombra da noite subia do vale para a terra morta de Camaxilo. O velho Bernardo acendeu o cachimbo e fumou-o de olhos fechados.”

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